A história da criança em Portugal, e a verdade ou mentira na história recente

Acabo de ler com bastante interesse o livro com o nome A história da criança em Portugal, que recebi no Natal, mas como alguma parte da história se refere à minha geração e da autora (o que não deixa de ser um pouco assustador), tenho alguns comentários. A segunda parte do título, como verão, refere-se a outro livro... tanto quanto me é possível ajuizar, este não contém nada faccioso ou errado. O que tem são algumas omissões que, na minha opinião, são estranhas, no que se refere ao consumo (digamos assim) de literatura infantil em Portugal.

A omissão absolutamente mais gravosa foi a de Enid Blyton, que não houve uma única criança portuguesa com livros em casa naquela geração (dos 50 aos 80) que não leu, mas em geral a literatura infantil estrangeira (com a exceção da Pippi) não é de forma alguma mencionada, quando me parece que provavelmente correspondia a 90% das ofertas para o público infanto-juvenil em Portugal.

Outros autores que absolutamente merecem menção e que têm ou tiveram relevância para a nossa geração foram a Condessa de Ségur, Erich Kästner, Paul-Jacques Bonzon, E.H. Hildick, Will Scott, sem falar já dos que tinham feito as delícias da geração anterior como Júlio Verne, Emilio Salgari ou Karl May. E, para as raparigas pelo menos (mas somos metade da humanidade, não é assim?), ao lado da Pippi, ou melhor, um pouco mais tarde porque é para crianças um pouco mais velhas, veio a Anne de Green Gables (Anne e a sua aldeia, na versão portuguesa do meu tempo).

Outros autores portugueses que não foram mencionados, e que na minha opinião também tiveram bastante importância na formação da identidade das crianças privilegiadas nas décadas do Estado novo, foram Virgínia de Castro e Almeida, bastante progressista esta, mas que foi publicada aparentemente sem censura, e Maria Natália Lima, com "Os outros e eu" e uma continuação, e que tinham a vantagem óbvia de serem autores portugueses a falar de Portugal. Também Margarida Castel-Branco com três livros em zonas de Portugal (Berlengas, Conímbriga e a Gorongosa), esta claramente ajudando a situação, o que não lhe retira de qualquer maneira o valor literário. Para todos os efeitos, e para mostrar que isto não é autismo, veja-se http://www.etudogentemorta.com/2010/06/lemos-o-que-somos-ou-o-que-gostar... para um depoimento da mesma época e que menciona muitos destes livros.

Se por um lado numa história da criança isso talvez seja irrelevante, a menção de uma lista considerável de escritores de literatura infantil portuguesa, muito menos lidos, realça a sua falta. Eu diria, aliás, que o livro (que é bom e bem escrito) poderia ainda ser bastante melhorado se a autora, sendo aparentemente um passatempo e um gosto seu, tivesse também feito uma análise da menção da infância na literatura portuguesa. Estou-me a lembrar da educação de Augusto e a educação que ele dá, na Morgadinha dos Canaviais.

E agora, para um assunto completamente diferente, mas igualmente relacionado com a história de Portugal, vou falar de um livro que eu comprei este Natal de uma testemunha do MNE sobre Aristides de Sousa Mendes, de um salazarista que conheceu por dentro o ministério dos Negócios Estrangeiros e as pessoas que nele trabalhavam ao tempo. O livro está horrivelmente mal escrito, e é extremamente repetitivo, o que o autor aliás reconhece mas diz que o faz porque está a analisar capítulo por capítulo outro livro, este panegírico em relação a ASM, e porque pretende repor a verdade. Maugrado todas estes defeitos, o livro é um depoimento que me parece importante sobre a forma como se faz história.

Embora eu vá comprar (e ler) o livro que ele critica, fiquei plenamente convencida de que ele tem razão em relação a vários pontos: não seria humanamente possível conceder 30 mil vistos em 3 dias, mas apenas seiscentos e tal; que esses vistos estavam a ser concedidos por Portugal e não por Aristides; que muito embora as boas intenções que ele deixa a este, não fosse a política salazarista de não fazer distinções raciais os muitos judeus que por cá (quero eu dizer, por Portugal) passaram teriam perecido; que houve muitas outros gestos de proteção de judeus no que se refere à política portuguesa na segunda guerra mundial e que destes nunca se fala; que criar o mito em volta de Aristides Sousa Mendes foi um ato político e não relacionado com a realidade; que ASM nunca foi maltratado nem morreu na miséria; que os vistos foram todos pagos, como era legal; que a história dele foi aproveitada pelos descendentes e outros para criar um mito.

E isso põe a questão de a que ponto é que podemos realmente confiar nos factos históricos, mesmo aqueles nossos contemporâneos e sobre os quais uma assembleia legislativa aprova de pé aparentemente um disparate, visto que não se pode reintegrar numa carreira alguém que nunca saiu dela.

Eu tenho a maior simpatia pelos judeus e pelos heróis, e quem os ajuda ou ajudou, se não foram 30000 mas apenas 600, ou se foi apenas um, mas é exatamente por isso que me parece essencial não distorcer os factos nem as realidades -- porque se a distorção abunda e é o que podemos esperar da "História", então tudo pode ser posto em questão. Isso também explica o facto até agora inexplicável de que tinha havido muito poucos agradecimento dos milhares de judeus salvos. Não é falta de gratidão, é inexistência de razão para gratidão, se pagaram um visto e chegaram cá.

Seria muito interessante ler o que o próprio Aristides Sousa Mendes escreveu sobre o que se passou em Bordéus. Mas, de acordo com este autor, ele nunca falou explicitamente em judeus na altura, e deu vistos a todos os que pediram e pagaram. Depois de todos conhecerem os horrores a que os judeus foram sujeitos, pode-se falar em salvos, mas também se pode pôr em questão, como Carlos Fernandes faz, se essa não é uma questão post-hoc. ASM e os próprios não poderiam saber o que viria a acontecer -- ou poderiam?

Não quero diminuir a grandeza de um homem que ajudou pessoas que estavam em perigo e que dele precisavam, mas, se ele estava em conflito permanente com o MNE, não se pode falar de uma decisão que pôs em perigo a sua carreira, nem afirmar que, tendo recebido o seu vencimento total até morrer, morreu na miséria por causa de perseguição.

Eu acredito em heróis, mas não devia ser preciso mentir para fazer heróis.

Emneord: cultura, história Av Diana Sousa Marques Santos
Publisert 27. des. 2014 12:06 - Sist endret 1. juli 2016 10:42