Amílcar Sernadas e identidade académica

É triste que apenas se fale de uma pessoa quando ela nos deixa, e esta questão é duplamente atual porque a minha última entrada neste blogue se referia sobretudo ao negativo do meu doutoramento há vinte anos, quando uma das melhores coisas que esse doutoramento me trouxe foi ter podido privar com dois homens excecionais, os meus orientadores. Hoje, e com muita pena de não o ter feito (suficientemente) em vida, vou falar do Amílcar Sernadas, de como o conheci e o que aprendi com ele.

Amílcar Sernadas era professor de Matemática no Técnico quando eu tirei o curso, mas nunca o tive como professor. Mas ele tinha também um grupo de investigação no INESC, e foi no INESC que eu o conheci. Além de o cumprimentar nas escadas ou de o ver em reuniões gerais, a primeira vez que tive de contactar com ele foi por ele ter sido nomeado o redator da revista científica do INESC, penso que se chamava INESC Journal of Research and Development, e por ter enviado regras estritas e claras de como organizar uma publicação científica. Era claro, desde essa altura, que ele era o mais conhecedor e mais sincero representante de investigação a nível internacional, enquanto muitos outros chefes de grupo eram mais "empresários" ou "diletantes". Não quero evidentemente denegrir nenhum outro grupo (cada um tinha as suas vantagens e o seu "carácter", e até eu tinha um grupo na altura), mas o Amílcar era sem dúvida de longe o mais apropriado para dar respeitabilidade académica.

Não por ser vetusto, muito pelo contrário, era jovem e empenhado, mas por ter um respeito e uma vontade de fazer as coisas da maneira certa, de nunca comprometer a qualidade. Talvez seja importante dizer desde logo que não era o Amilcar (só), era o casal Sernadas, dois matemáticos eminentes com o mesmo gosto pela ciência e pela educação/formação dos alunos, que tinham decidido devotar a sua vida às lides académicas. Ambos com um excelente número de publicações cientificas, respeito internacional, e um gosto pelo rigor e pela excelência.

Por essa razão, eram um pouco temidos, porque representavam a nata da academia, e não faziam compromissos. Quando, depois desse breve encontro em relação à publicação na tal revista, e de breves trocas de dois dedos de conversa relativamente cerimoniais -- porque o casal Sernadas, de facto, pelo menos para mim, era um pouco intimidante devido à sua aura de génios, eu comecei a fazer o meu doutoramento, o Tribolet (tem de ter sido o Tribolet) decidiu que ele seria o meu co-orientador, eu confesso que fiquei com medo de que ele exigisse demais de mim, ou que ele não se desse bem com a "minha" área e/ou com o Lauri. Mas nem pensei em pôr em questão essa atribuição: fiquei até muito honrada por o Sernadas aceitar (embora provavelmente para satisfazer o Tribolet), e fiquei muito grata por ele me dizer logo: -- Eu estou aqui apenas para te facilitar a vida, o teu  orientador é o Lauri, se precisares de mim pede-me coisas, mas eu não te vou exigir nada.

Durante os quase seis anos que eu demorei a escrever a tese, ele foi sempre simpatiquíssimo -- assinou as cartas todas que eram precisas para a variada burocracia, deu-me conselhos, deu-me bibliografia, mas, sobretudo, deu-me carta branca. Além disso, não torceu o nariz às várias coisas que fiz que não são (ou pelo menos não eram) muito católicas, em particular ter duas filhas/gravidezes durante a escrita da tese, e mudar de país também durante esse período. Foi um modelo de apoio e um modelo de não pressão. O que é ainda mais espantoso numa pessoa que decidiu não ter filhos para se dedicar à vida académica, e que portanto poderia ter tolerância zero essas "distrações".

Com tanta coisa que se passava na minha vida, tive pouco contacto com ele durante a escrita da tese. Mas um dos jantares memoráveis da minha vida foi o do dia da minha defesa, em que fomos jantar a um ótimo restaurante (esqueci-me qual!) a quatro: ele, a mulher, o Lauri e eu, e conheci-o muito melhor. Soube em particular que ele e a Cristina gostavam muito de ficção científica -- algo que na altura me espantou muito, mas que, depois de ter lido (o mês passado!) The End of Eternity do Asimov, só tenho pena de não ter descoberto mais cedo! -- assim como de comida... Pode parecer prosaico falar aqui de que me agradou que as pessoas gostem de comida, mas há tantas pessoas que não dão importância à comida, ou lutam com a comida por causa de dietas, etc., que ver pessoas apreciar comida (como eu aprecio) faz-me sentir que somos parecidos (não "soul mates" mas "body mates"). Além disso, tinham ambos um grande sentido de humor!

Desde aí (vinte anos, não é?) apenas os encontrei muito esporadicamente -- penso que a última vez foi em 2009 quando fui falar no Ciência 2009 na Gulbenkian. Mas de vez em quando recebia algum mail do Amílcar, em particular ele gostava de fazer uma coisa a que chamava a sua "genealogia científica": quantos doutorados tinham sido orientados por doutorando seus, e já tinha netos e trisnetos, e gostava de receber essas notícias para aumentar a sua árvore genealógica.

A última vez que contactei com ele foi graças à iniciativa que alguns alunos e colegas tomaram o ano passado, de organizar uma conferência em sua honra: https://festschrift.math.tecnico.ulisboa.pt/ Como não vivo em Lisboa, apenas escrevi uma pequena mensagem que lá foi lida, e que ele, já tão doente, ainda teve a simpatia de agradecer por mail.

Pensando bem, o Amilcar Sernadas representou para mim o melhor da identidade académica: o rigor, o entusiasmo, a qualidade, e a honestidade científica. Tenho pena de o ter conhecido tão mal, mas por vezes basta conhecer ligeiramente uma pessoa para ela nos dar um exemplo e uma confiança nas instituições e na academia. Há poucos outros que, como professores e pessoas, me serviram de farol. Não vou agora mencioná-los, porque se tivesse de escolher o que mais representaria a identidade académica pura, seria mesmo o Amílcar Sernadas. Muito obrigada, Amílcar!

 

Publisert 17. feb. 2017 11:56 - Sist endret 17. feb. 2017 13:13