Deficientes linguísticos, não!

Estive recentemente em Portugal, e adorei, pelas várias coisas que lá fiz e as pessoas que conheci ou com quem estive. Mas, como "dos felizes não reza a história", o que venho comentar aqui foi a (única) coisa que me entristeceu, e essa sim profundamente: a falta de respeito, e de consciência, que os portugueses têm em relação à sua própria língua. A ponto de, na minha opinião, estarem rapidamente a tornar-se "deficientes linguísticos."

Com efeito, estive numa conferência de comemoração do dia dos cientistas, em Leiria, no dia 18 de maio, sessão essa muito interessante e enriquecedora -- exceto por uma coisa. Embora me tivessem pedido para focar precisamente sobre esse assunto (falando, em honra do grande ministro da ciência, e da língua, Mariano Gago), o que demonstra uma sensibilização grande por parte do Ciência Viva, mais nenhum participante deu a menor importância à língua portuguesa. Repito, ninguém, nem mesmo o presidente da República, que citou história, cultura, música, sei lá mais o quê na sua longa intervenção em prol da ciência em Portugal (aliás, num português excelente). Contudo, a língua ou a literatura, essa não teve honras de menção sequer. Não certamente por não a considerar importante, mas por considerar que, para uma audiência de cientistas, iria cair em saco roto.

Mas uma coisa é ausência, outra, pior, é o denegrir ou o considerar um empecilho, ou simplesmente atropelar de uma maneira incrível. Vou, portanto, sem citar nomes, descrever um pouco essa atitude que é suicida intelectualmente, na minha opinião. Senão vejamos:

Houve um painel de discussão sobre as relações entre a ciência e a arte. Pois nesse painel várias pessoas descreveram a sua arte como universal ou internacional, por oposição às "barreiras linguísticas"! Ou seja, língua = barreira, chatice, ónus. Tenho que dizer que a minha impressão delas (dessas pessoas) foi a de que são, coitadas, muito pouco conscientes de que existem igualmente "barreiras" visuais, ou seja, que a perceção (visual) da natureza, da sociedade, da arte, é tão cultural como a língua. E que existem tradutores da língua -- mas ainda não tradutores visuais. Talvez fosse altura de compenetrar essas pessoas de que a sua "universalidade" ou a sua convicção de que fazem parte de um mundo global sem barreiras são apenas resultado de um imperialismo cultural de que elas nem sequer estão conscientes?

Depois (ou antes, não interessa) houve as célebres citações de Skakespeare e de outros autores de língua inglesa, às vezes mesmo em inglês. Não temos autores em português que possamos citar em relação à ciência -- ou a qualquer outra coisa? Não tendo (por uma vez) estrangeiros na sala, é preciso mostrar que conhecemos Shakespeare -- a quem? A editora do Técnico (engenheiros, portanto) há alguns (bons) anos publicou um livro sobre referências à música em Camões, mas esta geração em Portugal acho que já nem ouviu falar do "saber de experiências feito".

O pior de tudo veio na sessão ciência e indústria, essa sim não em português mas em crioulo de base inglesa. Uma pessoa que falou (além de ter a apresentação em inglês) usou pelo menos 50% de termos nessa língua, e claramente não sabia como se exprimir sobre os assuntos versados em português. Não sabia correspondências de palavras tão simples (e centrais) como "core" : nuclear, essencial, central -- e muitas outras de que agora não me lembro, mas que me senti agredida de cada vez que as ouvia. Tão ufano por ter uma empresa internacional, que se gabou de que em todos os escritórios (deve ter dito "offices", claro) se falava inglês. Qual é a vantagem de ter uma empresa internacional portuguesa que não se lembra de obrigar a que em todos os escritórios (sim, aqueles nos EUA, e na Ìndia) se fale português? Eu sei, o capital não tem fronteiras, mas então porquê usar essa empresa como modelo de uma empresa de sucesso no dia nacional dos cientistas? Para mim, é uma prova de total falhanço. Podiam antes chamar a empresa norueguesa Equinor, antigamente chamada Statoil, que tem como uma das línguas de trabalho... espanto? o português. Claro, não por causa de Portugal. Felizmente há outro(s) país(es) de língua portuguesa em que esta é mais forte.

Mas o meu desconforto e desgosto não ficou por aqui. Soube, nomeadamente, que tinha havido uma proposta de lei sobre a necessidade de publicar em português (publicação científica), que tinha sido chumbada (ou pelo menos contestada) pelas próprias universidades portuguesas. Porque não fecharem e transformarem-se em agências de viagens para países de língua inglesa -- onde certamente os professores falam melhor inglês, e as pessoas podem beber a linguagem da ciência das próprias fontes? Pois como me disse uma amiga que foi fazer Erasmus a Inglaterra em gestão de empresas, pelo menos lá os professores falavam bem inglês.

Existem, de facto, uns vagos departamentos de ensino de português para estrangeiros, e até de tradução, em Portugal. Mas para que servem os profissionais da língua, quando é muito melhor assimilar a língua do outro? Quando os alunos não sabem escrever na própria língua e devem escrever noutra que ainda sabem pior, acham mesmo que a qualidade científica melhora? Quando os professores são obrigados a escrever em inglês por causa da internacionalização, como é que podem ensinar bem e produzir materiais para os seus alunos? Não, estes podem ler os materiais em inglês produzidos pelos tubarões da publicação científica, assim prestando mais um desserviço (como se diz em português do Brasil) às editoras portuguesas (e brasileiras).

Temos muitos alunos brasileiros que vêm estudar para Portugal: uma óbvia vantagem seria a língua comum. Mas, se eles vêm para Portugal ouvirem aulas em mau inglês, então não há razão para não preferirem a Inglaterra, ou mesmo qualquer outro país em que o inglês seja melhor. É que, vivendo num país onde o inglês é tão bom que o norueguês está em vias de extinção, tenho de dizer que o inglês dos portugueses é muito mauzinho!

Resumindo, esta subserviência em relação a uma internacionalização mal concebida -- Portugal é e foi dos países mais internacionais do mundo! -- esta subserviência em relação ao inglês em vez de uma aposta forte na portuguesificação, e na tradução do que for necessário para outras línguas, transforma todos os portugueses em deficientes linguísticos. Ou seja, portadores de uma doença (o português) que os prejudica em relação a outros povos mais saudáveis, porque têm o inglês como língua materna ou oficial.

Vamos apostar na ciência em português? E erradicar o sindroma "internacional é inglês"? Eu não aceito a condição de "deficiente linguística". E, ao contrário de Salazar, acredito que estamos "orgulhosamente acompanhados" por muitos povos e pessoas que têm o português no coração, mas também no cérebro! Deploro profundamente que o conceito de epistemicídio, originalmente concebido por Boaventura Sousa Santos para línguas muito mais ameaçadas, já esteja a ser notado na sexta língua mais falada no mundo.

 

Publisert 12. juni 2018 09:49 - Sist endret 12. juni 2018 13:27