Duas esquerdas?

De há quarenta anos para cá, parece-me que os ideais de esquerda -- o que significava ser de esquerda -- mudaram tão radicalmente, que podem quase chegar a propor o seu contrário. Aqui estão algumas reflexões de uma pessoa que era da esquerda antiga, e a quem portanto custa aceitar, ou pelo menos se surpreende, com alguns dos casos da esquerda moderna.

Vou-me referir aqui às duas questões primordiais raça e sexo, e tentar explicar o que -- talvez sem razão -- eu considero que eram as atitudes de esquerda há quarenta-cinquenta anos. (Isto porque a grande vaga da esquerda em Portugal foi nessa altura, ao redor do 25 de abril, e também porque coincidiu com a minha tomada de consciência política, logo com a formação da minha identidade pessoal.)

O problema, ou disparidade em relação ao mundo atual, penso que é o mesmo nos dois casos.

Dantes -- e estou desagradavelmente consciente de que falar de "dantes" é um discurso típico de direita -- lutámos, lutávamos, pela igualdade das raças, contra o racismo, no sentido de, seja qual for a cor da pele de uma pessoa, ela ter os mesmos direitos e não ser prejudicada pela sua constituição física. A "raça" seria algo a não considerar. Agora, pelo contrário, cada vez mais as pessoas se identificam com a sua cor da pele, e/ou com a imaginária pertença a uma etnia (entre as várias que os seus antepassados tiveram).

Dantes, lutámos, lutávamos, para que a identidade sexual fosse irrelevante para a sociedade, de forma a que as mulheres não fossem prejudicadas, ou preteridas, por serem mulheres. Ou seja, o sexo seria algo a não considerar na maior parte dos assuntos sociais e intelectuais. Agora, o sexo tem cada vez mais importância, a ponto de ser algo tão importante que cada vez mais pessoas escolhem trocar de sexo, e considerar que isso é a coisa mais importante da vida deles.

Resumindo, enquanto há quarenta, cinquenta anos as pessoas de esquerda lutavam pela igualdade (e consequente redução da importância desse traço) tanto em relação à raça como ao género, agora o que é considerado radical, avançado, e de esquerda (toda a esquerda?), são os direitos das minorias qua minorias, o seu fortalecimento e aumento da identidade grupal individual. As pessoas passaram a lutar pelo direito à diferença, mas não um direito à diferença individual (porque esse penso que já fazia parte das reivindicações antigas) mas um direito à diferença grupal, adicionando cada vez mais traços e desenvolvendo cada vez mais identidades de grupúsculos, contra uma "maioria" cada vez mais silenciosa.

E daí temos, em vez de um conjunto de pessoas (de cores variadas e de sexos diferentes e orientações sexuais diferentes, mas sem que a cor ou o sexo ou orientação fossem relevantes), um conjunto de categorias cada vez mais divididas, estanques, e rebeldes, sem estatuto político ou ideal que não seja pertencerem a uma comunidade com traços comuns. Quanto mais pequena (no sentido do número de membros), mais aguerrida e mais pronta a bradar sobre a discriminação que sofre.

Uma das coisas que me assusta neste "progresso", é que assistimos a um discurso que cada vez mais justifica que a sociedade inteira deve ser modificada para servir os interesses de grupos cada vez menores, e que quem não faz parte desses grupos e se opõe, é imediatamente rotulada de reaccionária, de direita, ou pior.

E assusta-me por várias razões: é que não vejo debate além do "queremos o reconhecimento dos nossos direitos porque somos uma minoria", não vejo ideais a não ser "nós somos assim e queremos manter-nos assim a todo o custo", e porque afastam uma maioria de pessoas que podem aceitar pessoas diferentes, mas que não querem que essas pessoas diferentes mudem completamente a vida delas, eventualmente para pior. E até podem passar de pessoas de esquerda moderada... a pessoas de direita declarada.

Sei que a primeira coisa que (algumas) pessoas da nova esquerda vão dizer sobre estes meus pensamentos, é: vão-me encaixar na etiqueta "branca" -- e portanto não me posso pronunciar sobre raça, e na etiqueta "heterossexual" ou novas que sei mas não tenho a certeza se quero usar -- e portanto não me posso pronunciar sobre o LGBT+ etc. Ora, se há coisa a que eu reajo, é a redução a um grupo para evitar o diálogo. Algo que eu apelido de profundamente racista ou sexista (no meu tempo, ainda se ouvia: "és mulher, vai lavar pratos", "és preto, vai para a catinga", em vez de ouvir os seus argumentos). E se lutei, como pessoa de esquerda, toda a minha vida contra isso, não posso deixar de reagir quando sou agora posta do outro lado.

O sermos seres humanos é mais importante do que qualquer raça, nacionalidade ou sexo que tenhamos. E se o orgulho nas suas raízes e na sua história, seja de um índio amazónico, de um macaense, de um português, de um brasileiro ou de um angolano, deva ser admirado e aceite, esse orgulho não deve nunca impedir que encontremos o comum, que tentemos compreender o outro, e que procuremos o que nos faz a todos seres humanos em devir e em aperfeiçoamento. Se o orgulho tribal se sobrepõe à humanidade global, voltaremos a ter o nazismo, ou a antropofagia -- voltando a um tempo em que não havia a noção de "cidadão/camponês do mundo".

Por muito que a nova esquerda se entusiasme com os direitos de grupos cada vez mais pequenos, é importante que não perca o ideal de uma humanidade inteira, independente de traços físicos, biológicos. É importante que a velha esquerda não seja arrumada como algo que já deu os seus frutos, mas sim que seja possível um diálogo e uma conversa entre gerações e mundos. E que o "politicamente correto" não seja usado como mais uma forma de censura e de auto-censura que impeça o raciocínio e a liberdade de pensamento.

A ideia da esquerda por oposição à direita é a procura da justiça social, a defesa dos oprimidos, a distribuição mais equitativa dos recursos, a procura do bem comum e não a defesa da ordem pré-estabelecida, das hierarquias, do status quo.

Pode ser que os dois casos que discuti, o do género e da etnia, sejam vistos pelos seus proponentes como exatamente casos paradigmáticos do que escrevi acima. (Devem ser, senão não teriam sido catalogados como de esquerda!) Mas a solução, a fragmentação e a divisão entre grupos a que levam, não me parece de forma alguma um ideal a perseguir.

Publisert 8. mars 2021 21:13 - Sist endret 8. mars 2021 21:20