Gritos silenciosos -- ou demasiado barulhentos

Tenho estado a ler uma obra muito interessante de uma imigrante na Noruega como eu, chamada Gritos silenciosos (Tause skriker), com o subtítulo A necessidade de reconhecimento das mulheres das minorias (Minoritetskvinners behov for annerkjennelse), e isso fez-me pensar que, tanto quanto as mulheres do Terceiro Mundo (sobre as quais o livro versa) se sentem desintegradas e "desidentitadas", ou seja, não lhes é reconhecido o "direito" social de serem diferentes, assim as mulheres do segundo mundo -- que, acreditem!, são todas as do Sul da Europa e do Brasil/América Latina... portanto e para todos os efeitos, todas as lusófonas -- são "despromovidas" pelo estereótipo de falar muito e alto, mas não ter a cabeça fria.

O livro -- que aconselho absolutamente -- de uma socióloga afegã que vive há muitos anos na Noruega, Farida Ahmadi, e que também existe em inglês, faz uma pergunta muito interessante: porque é que a maioria/muitas das mulheres estrangeiras, do Terceiro Mundo, que vivem na Noruega, em vez de se sentirem felizes e realizadas, sentem-se deprimidas, perdidas, e desautorizadas?

Esta é a minha leitura do livro, não é uma tradução do que ela escreve.

Mas é uma pergunta extremamente pertinente, porque outros (e agora mais perto da minha própria vida) poderiam perguntar: porque é que as mulheres do Segundo Mundo que vivem na Noruega se sentem zangadas e não levadas a sério?  Agora, é preciso evidentemente afirmar desde já que eu não sou socióloga, não fiz nenhum estudo sobre as opiniões das mulheres (ou dos homens), e no princípio da minha vida aqui não tinha de forma alguma essa perceção.

Mas com todas essas ressalvas, e com o peso de já ter vivido cá quase um quarto de século, e ter portanto conhecido muitas pessoas (portuguesas, brasileiras, espanholas, chilenas, etc.) e também muitos outros imigrantes de várias nacionalidades: eu costumava dizer que a coisa que mais me tinha espantado na minha transplantação para a Noruega é que a maiora das pessoas de quem me tornei verdadeiramente amiga ou, pelo menos suficientemente para ir a casa delas e vice-versa, são 98% estrangeiras: checas, irlandesas, canadianas, búlgaras, ... Sem querer evidentemente desfiar o rol da minha vida privada e muito menos familiar, e confessando que sim, passo todas as férias e tempos livres em Portugal, como uma verdadeira emigrante (vista do lado português), mas mesmo assim é de espantar.

E o mesmo ao longo da minha vida na Noruega, fui deparando com: clubes (informais) de crianças estrangeiras na escola -- bósnias, russas, portuguesas e marroquinas... maioria das alunas (femininas) de alguns cursos no instituto de informática eram estrangeiras: indianas, do Norte de África, turcas, portuguesas... E o mesmo se passava na minha seção do SINTEF (informática): as mulheres lá eram (mais que) maioritariamente estrangeiras: iranianas, portuguesas, croatas...

Claramente a Noruega tem um problema com as mulheres! (E, por isso, também com os homens.)

Mas o meu objetivo de escrever este blogue não é o problema da mulher em lado nenhum -- é o problema dos estereótipos e das variadas formas de calar que existem, e de que a maioria das pessoas não está consciente. Neste caso, é o problema do "segundo mundo" na Noruega. E por segundo mundo, ou aliás, generalizando como segundo mundo os portugueses, espanhóis, italianos, gregos, turcos, brasileiros, uruguaios, sérvios, bósnios... pessoas com um nível cultural/académico em média mais elevado do que o do norueguês médio, e que são tratados socialmente como se fossem cozinheiros, marinheiros, secretárias ou prostitutas. (Ora, mais uma ressalva! Eu não estou contra essas profissões, que existem em todas as sociedades do mundo... Mais: os que o são, são provavelmente muito mais bem tratados do que no seu país de origem. Mas não é a esses que me refiro, nem são esses que certamente leem o meu blogue...)

O que eu, como pessoa de nível cultural elevado no meu país, sinto e senti quando cheguei e desde que cá estou, é que há um "ranking" (inconsciente) dos países para um norueguês vulgar. Se és paquistanês, és motorista de táxi ou empregado de limpeza. Se és português, és secretária ou marinheiro ou cozinheiro industrial. Se és americano ou francês, então sim, podes elevar-te ao mesmo nível que eles (noruegueses).

A primeira vez que eu me dei conta disso objetivamente, foi na Suécia, quando dei uma palestra muito bem sucedida, e estava eufórica, quando algum tempo depois descobri que pensavam que eu era americana (ou que vinha dos Estados Unidos).

E como conheci ou ouvi falar deste livro, ou melhor desta autora? Ah, isso foi há um mês, quando estávamos ambas, cada uma do seu lado da sala, numa sessão de esclarecimento sobre as eleições da universidade, e fomos sistematicamente ignoradas ou no máximo alvo de recados condescendentes (ela mais do que eu, porque mais "exótica", ela do terceiro, eu do segundo, mundos) e não respondidas pelo painel, e pelo moderador. É certo, o nosso norueguês não é bom (pelo menos o meu). Mas a universidade, pensávamos nós, queria ser considerada internacional. Por isso, não me parece aceitável que nos considerem académicas de segundo nível, sobretudo quando não ensinamos, nem publicamos, em norueguês! Apenas tentamos discutir... sem qualquer sucesso.

Que fique aqui o depoimento, não penso calar-me, mas tenho claramente de ver qual a melhor forma de os lusófonos na Noruega não serem (culturalmente) tratados como cidadãos de segunda.

 

Publisert 14. juni 2017 12:18 - Sist endret 14. juni 2017 12:30