E isto faz-me refletir sobre os limites da adaptação.
Porquê uma reconstituição histórica tão precisa da época em que Lucy M. Montgomery escreveu a sua história, para depois a desconstruírem/mudarem completamente?
O perigo desta adaptação é que a maioria das pessoas que vir este filme vai pensar que ele espelha o conteúdo do livro. E que no século XIX uma menina diferente tinha as opiniões consideradas certas pelas pessoas que adaptaram a série: tudo sobre assuntos (que coincidência, hem?) o mais possível atuais nos Estados Unidos, como a homossexualidade, o racismo, a educação, o xenofobismo...
Não é que eu discorde de alguma posição política neste filme.
Do que eu discordo, é da total ahistoricidade da história que é contada. As ideias têm um tempo. Pô-las noutro tempo é distorcer a história completamente -- sobretudo se se dá a impressão de fazer uma reconstituição (material) correta.
Ora a Anne era revolucionária no seu tempo. Mas o seu tempo era tão diferente... e só se pode compreender outros tempos lendo ou vendo as histórias como se passaram, ou como foram imaginadas. Ao contrário de moralizar para trás, como proibindo E tudo o vento levou, censurando os "bonecos pretos" da Enid Blyton, ou alterando completamente uma história antiga, como é este o caso.
Eu não seria contra uma adaptação da Anne from Green Gables em que ela vivesse no século XXI, e exprimisse algumas ideias que exprime nesta série, mas com o enquadramento semelhante. Aí sim, seria uma adaptação que não era anacrónica, e que mostraria claramente que o que os adaptadores queriam era imaginar "como seria a Anne nos tempos atuais?"
Mas o que eles fizeram é anacronismo, e é sobretudo péssimo porque atraiçoam uma obra literária, que perde o seu encanto ao ser "demasiado" atual.
Pior do que tudo, é a mensagem que os adaptadores querem passar, a de que as ideias e os sentimentos e a moral sempre foram as mesmas. Estão a negar a história -- e neste caso, também a literatura.
Típico destes tempos -- perigosos.