Júlio Dinis e a necessidade de interdisciplinaridade

Lembro-me de o meu antigo professor do Britânico, George Lind Guimarães, dizer numa aula que o estatuto dos médicos na Inglaterra era muito baixo, ao contrário de Portugal, como o provava o enorme número de escritores médicos portugueses. E o mesmo se podia dizer em relação a engenheiros.

Mas esta entrada é para homenagear o meu escritor preferido. E reparem, infelizmente, o escritor/escritora de que gosto mais é uma escritora. Por isso terei de dizer, em português: é o meu escritor masculino preferido. E também o meu escritor (ou escritora) português preferido. Mas se é "meu"  ou não é completamente irrelevante! O que me parece importante é falar aqui de Júlio Dinis, num ângulo que é relativamente raro: o da interdisciplinaridade, ou talvez melhor contra a separação entre saberes e competências.

É conhecido de todos (pelo menos dos que o leram) que Júlio Dinis, pseudónimo de Joaquim Guilherme de Gomes Coelho, era médico, e que, pelo menos segundo o médico eminente que editou as suas obras e talvez o tenha tornado ainda mais conhecido e/ou respeitado, por se ter dedicado a estudar e a preservar o seu espólio -- Egas Moniz, o nosso único Prémio Nobel em ciências (Medicina), -- era um precursor de Freud e tinha muitas ideias muito interessantes sobre psicologia e sobre doenças (mentais e físicas).

Além disso e também segundo Egas Moniz, Júlio Dinis era um "pintor" excelso em termos das personagens que ele descrevia, todas completamente verdadeiras -- até ao ponto de o João Semana ser o médico de Ovar!

Independentemente destes pormenores, não há qualquer dúvida de que as personagens que ele "pinta" ou descreve são extremamente ricas e, embora por vezes demasiado boas e exemplares, muito consistentes psicologicamente.

É verdade que, numa época em que os romances têm de ter crimes e problemas psicológicos graves, a galeria de personagens do Júlo Dinis é pouco crível ou apelidada de cor-de-rosa. O que me enfurece, porque era essas pessoas que nós deveríamos tentar imitar, conhecer, admirar, criar, em vez de rejeitar como ingénuas ou irrealistas.

E isto tanto no caso dos homens, como das mulheres. Muitas delas as mais admiráveis, corajosas e inteligentes do enredo -- e nunca simples bonecas alvo de desejo. Eu cresci com essas personagens (e também com os homens que com elas contracenavam) e estou mais rica de modelos e de desejos e sonhos que aqueles que só leram literatura cínica.

Dos escritores do século XIX, e pese embora a grande admiração que Júlio Dinis dedicava a Garrett, não tenho a menor dúvida de que o mais realista, o melhor descritor, o com mais sentido de humor, e o com mais talento a escrever histórias que nunca perdem o interesse porque estão cheias de episódios emocionantes e inesperados, é o Júlio Dinis. As cenas dramáticas sobretudo das Pupilas, mas tb da Morgadinha, são inimitáveis. E o enredo está tecido magistralmente.

Voltando contudo ao assunto deste blogue, como é possível pensar que um escritor pode (ou deve) ser apenas escritor? Como não ver que as pessoas de sensibilidade e de intelecto superior  não podem ser "apenas" uma coisa mas quanto mais coisas sabem e praticam mais melhoram toda a sua atividade?

No caso do Júlio Dinis, além de fazer com que os seus livros fossem interessantes para todas as classes de pessoas, em particular também para as de índole científica, ele conseguiu um feito literário como poucos: inspirar muitos médicos para a sua profissão, através da figura de João Semana! Um arquétipo do médico de província que ele muito contribuiu para glorificar. O mesmo poderá ter feito em relação ao agricultor e ao padre como o senhor reitor.

É verdade que foi instrumentalizado pelo fascismo -- ele que era tão progressista e tão contra o obscurantismo -- mas todos os mortos podem ser aproveitados para todos os fins. E quais dos nossos grandes escritores que não foram instrumentalizados pelo nosso fascismo?

Mas conhecem algum outro livro que descrevesse melhor pessoas do povo do que os dele? Conhecem outros livros na literatura portuguesa em que os finais felizes são sempre a favor do povo? Em que a soberba e a riqueza nunca são vistas bem? Mesmo nos anos mais revolucionários a seguir ao 25 de abril, quando os li e lia, eu que era de extrema esquerda e revolucionária até ao tutano, nunca houve uma frase ou consideração dele que me tenha chocado. Lia-o com o mesmo fervor e admiração com que lia Soeiro Pereira Gomes.

E por isso talvez os utilizadores da Linguateca possam agora compreender porque é que os nossos servidores se chamam ou chamavam dinis: uma homenagem singela a um grande escritor da língua portuguesa, interdisciplinar e positivo, no sentido de que tinha esperança na ciência, na instrução, e na humanidade.

Emneord: cultura, identidade, literatura Av Diana Sousa Marques Santos
Publisert 29. juli 2015 13:29 - Sist endret 17. mars 2016 10:06