Língua comum: onde estão as fronteiras?

Às vezes, sinto-me cansada do entusiasmo que constato que os brasileiros têm em sublinhar que o português brasileiro é outra coisa. Sim, é a mesma língua, mas... há formas de expressão que só existem no Brasil, e outras que só existem em Portugal. E embora isso seja inegável, dão na minha opinião demasiada importância a esse facto.

Mas no mês passado tive a confirmação de que estabelecer a fronteira não é tão fácil como algumas pessoas pensam...

O contexto foi uma das mais interessantes sessões que alguma vez tivemos no nosso círculo de leitura, com a presença do autor, Luiz Ruffato.

Sim, foi por Skype, mas esteve tão presente e todos estavam tão presos das suas palavras e da sua simpatia que deve ter sido das sessões mais unidas e "presentes" que tivemos. O tema, apresentado aliás muito bem pelo Rafael, era o livro Estive em Lisboa e lembrei de você, que é uma narrativa sobre um emigrante brasileiro (mineiro, quero eu dizer de Minas Gerais) ilegal em Lisboa, e em que o autor usou uma forma muito interessante de chamar a atenção para os lusismos que vão entrando na fala desse brasileiro, a descrever situações e conversas passadas em Portugal. Luiz Ruffato grafou essas palavras em itálico.

O Rafael, ao apresentar a obra, falou da multilingualidade nela presente ("ouve-se" inglês mal falado, crioulo cabo-verdeano, e outras) e escolheu alguns trechos para ler. Ora, num dos trechos que ele leu, absolutamente por acaso, apareceu a palavra colocação (no sentido de emprego), qualquer coisa como "a ver se o senhor X me arranjava uma colocação".

O Gustavo, que é (bem, como descrever o Gustavo de forma não divisionista?) um lusófono com raízes portuguesas e japonesas, criado no Brasil, e tendo vivido no Brasil, em Portugal e em Moçambique (e portanto não haverá ninguém no nosso círculo com maior sensibilidade linguística em relação às diferenças dos vários portugueses!), perguntou ao autor porque é que ele não tinha identificado colocação como português de Portugal, dado que não se dizia assim no Brasil.

(Posso confessar que, quando ele perguntou isso, eu até pensei "Mas também não se diz assim em Portugal...", mas depois lembrei-me de ter ouvido na minha infância e achar que era uma forma antiquada de falar. Mas isso não interessa aqui...)

O que interessa, foi a resposta do autor. A resposta do Luiz Ruffato foi, então, inesperada:

-- Bem, não se diz no Brasil... mas diz-se em Minas Gerais, diz-se na minha cidade. Provavelmente tem a ver com a grande presença portuguesa em Minas Gerais no século XVIII... Por isso, se é português de Portugal não sei, mas é mineiro!

Aí, os outros brasileiros que não eram de Minas ficaram (talvez) um pouco espantados, e eu tenho de admitir que fiquei contentíssima. Porque é exatamente isso: a língua é comum, mas nem todos a usam exatamente sincronizadamente. Então colocação pertence ao português de Portugal antiquado e ao português do Brasil mineiro. Ninguém tem o domínio da língua inteira. Para quê focar sobretudo nas fronteiras, quando elas são fluidas e variáveis?

Uma caso semelhante deu-se comigo ao ler o Coração Andarilho da Nélida Piñon: Olha, afinal no Rio também se diz (dizia?) fazer gazeta (faltar às aulas)! Nenhum dos meus alunos brasileiros conhecia a expressão, diisseram-me que o certo no Brasil seria, se me lembro bem, matar aula. Será um questão de geração, sabendo nós que a linguagem juvenil é das que mais varia? Ou será uma questão regional, e os brasileiros a quem eu perguntei, nenhum era do Rio? Confrontei uma aluna do Rio, e da minha idade, esperançada, com esta questão, mas ela também não conhecia. O mais interessante, contudo, foi a explicação com que ela se saiu:

-- Depende muito do bairro do Rio, a língua é muito diferente de bairro para bairro...

E aqui concluo: não valerá mais a pena saber o que significa fazer gazeta, ou colocação, sem imediatamente lhe atribuir uma dada origem geográfica? Não será melhor que os brasileiros (e os portugueses) conheçam mais palavras para poderem ler a sua literatura, a literatura em português?

Publisert 1. okt. 2017 19:19 - Sist endret 13. apr. 2023 09:43