Portugal deve o seu sentido crítico aos judeus

O mês passado li com imenso gosto e mesmo aquele sentimento de "aha" que poucos livros dão uma obra que aparentemente nada tem a ver com Portugal ou com a cultura lusófona, chamado Jews and words, mas que em que me revi tanto, e em que reconheci tantos traços de muita da forma de comunicar e estar no mundo dos portugueses, que merece ser citada ou problematizada aqui.

A mensagem dos autores, um escritor e uma historiadora israelitas, pai e filha (Amos Oz e Fania Oz-Salzberger) , é que não há cultura que dê mais importância à escrita, ao livro, e ao conhecimento das fontes e da sabedoria, do que a judaica. Eu não sou historiadora nem culturóloga, mas os argumentos e as histórias contadas pareceram-me muito convincentes.

O que me "fez saltar a tampa" (como diria o Raul), contudo, foram as histórias do sentido crítico e do amor pela discussão típicos do pensamento e da prática judaica: exemplos bastantes de "discutir com Deus" tu cá tu lá, e mandá-lo embora que ninguém o tinha chamado à discussão... Não vou estragar o gosto que outros possam ter de ler este livro, maravilhosamente bem escrito, contando os pormenores, mas a questão é que dois argumentos (já digo quais são) sobre a cultura judaica me parecem completamente refletidos na cultura portuguesa. Pode ser por acaso. Mas parece-me mais natural que não seja por acaso e seja uma herança cultural dos judeus -- e dos cristãos novos, que são parte integrante de Portugal e da cultura lusófona.

As duas características são o respeito pela sabedoria (e/ou educação formal), e a capacidade de discussão como prova última de inteligência. Talvez sejam melhor explicadas pelo contraste com o respeito pela inocência dos cristãos ("venham a mim as criancinhas, ... os pobres de espírito") e o desenvolvimento das capacidades de discordar e ganhar um debate, que -- e agora tomando como comparação o país em que vivo há vinte anos, a Noruega -- são não só não desenvolvidas como reprimidas numa sociedade de "consenso" e de "calar".

Se eu contar algo que se passou comigo na Alemanha aos 17 anos, e agora mostro a Alemanha ou os jovens alemães daquela época como semelhantes aos noruegueses, talvez seja mais elucidativo do que argumentos teóricos.

A história é a seguinte: Estive um mês numa cidade alemã a ir às aulas como alemã. E fui levada a um teatro pela minha turma anfitriã, que eram todos amorosos e quiseram dar-me essa experiência. No fim, perguntaram-me o que eu achara. Sem pensar, mas desejando mostrar que era esperta e tinha sentido crítico, fiz uma observação qualquer sobre o cenário ou sobre os adereços, nada de muito inteligente ou sequer relevante. Fiz o que estava programada para fazer. Qual não é o meu espanto e terror quando vejo todos os meus amigos alemães penalizados e preocupados e admirados: estavam à espera que eu dissesse qualquer coisa como "adorei, foi uma maravilha", e não percebiam porque é que eu disse mal. Logo que eu vi as as caras deles, fiquei tristíssima porque não os queria magoar, e atrapalhadíssima por ver que tinha feito exatamente o oposto do esperado. Lá troquei os pés pelas mãos e disse para não darem muito importância ao que eu tinha dito, e depois disse que tinha gostado imenso de tudo o resto, ... mas isto ficou-me de lição.

Em Portugal a crítica é uma atividade tão natural como a nossa sede :-), mas em outras sociedades é mal vista, é rara, e deve fazer-se com muito cuidado para não ferir suscetibilidades.  Calculo que em Israel ainda esperariam uma crítica maior do que a que eu fiz... e que a capacidade de ter ideias críticas é bem apreciada. Concluo: A crítica é a nossa costela judaica.

Por outro lado, mais uma outra cena que me aconteceu, esta na Noruega, e ao contrário. (Quer dizer, na outra direção, e referente ao respeito pela autoridade de quem sabe.) Estava a discutir/falar com um colega meu do ballet sobre uma questão linguística, e ele respondeu-me com uma frase feita ou típica norueguesa "Eu não sei", ao que eu lhe redargui: "Mas eu por acaso estudei isso durante muito tempo e sei!" Enfim, não é para me gabar de uma saída não particularmente humorística nem simpática, mas o que é certo é que ele ficou pasmado e muitos anos depois ainda me diz que gostou muito da minha resposta. O que aparentemente isto significa é que é feio gabar-se de que se sabe alguma coisa na Noruega, e os professores rojam-se no chão à frente das secretárias para mostrar que não são melhores que elas.

Na Noruega, a minha impressão é que quanto mais ignorante, mais arrogante, e que um dos piores pecados é mostrar ou dizer que se sabe mais do que outros. Pois é, os noruegueses como cultura não dão qualquer prioridade ao escrito ou ao académico. Não têm qq costela judaica :-)

É verdade que há (muitas) costelas muçulmanas na cultura portuguesa e na lusófona em geral, e eu mais uma vez tenho um conjunto de histórias que ilustram isso a nível pessoal, mas a questão de "nada se compara a uma boa discussão", e "o mais inteligente é quem aceita se deixa vencer por um bom argumento" são portuguesas -- e judaicas!

Emneord: Portugal, cultura Av Diana Sousa Marques Santos
Publisert 5. sep. 2014 16:16 - Sist endret 15. juli 2015 10:28