Questões legais e o enviesamento da Justiça

Com este título, muito provavelmente pensam que me vou dedicar a discutir o funcionamento da Justiça portuguesa ou brasileira nalgum caso mais mediático... não podiam estar mais enganados! O meu tema é, conforme John Sowa mencionou recentemente na corpora-list, no dia de Reis: As the Jesuits say, "If it's right, do it. It's easier to apologize than get permission."

Ou mais prosaicamente, a relação entre justiça (conceito moral) e como funciona a "Justiça" (máquina burocrática) é, na minha opinião, muito ténue para não dizer inexistente. E isto no caso -- provavelmente pouco discutido quando se fala da "Justiça" em geral -- da forma como os investigadores da língua podem ou não usar os textos escritos por outros na Internete. Por exemplo.

A esse respeito, vou apenas contar dois casos. Visto que é um blogue, têm de me envolver ou de pelo menos os ter presenciado -- a minha noção de blogue, que talvez não seja consensual, é que tem de envolver um elemento pessoal. Dois casos que me parecem relevantes para compreender algumas formas de funcionar (ou não) num mundo digital, e até que ponto a justiça e a Justiça estão de costas uma para a outra.

O primeiro exemplo, por ordem cronológica inversa, tem a ver com regras jurídicas que, de acordo com os legistas burocráticos, não vale a pena promulgar: um código de uso de recursos pessoais a que os investigadores de uma universidade devem obedecer (que se obrigam a obedecer). Aparentemente, seria uma boa ideia. Mas não, porque "é demasiado caro/impraticável processar quem desobedeça a ele" (isso foi o que nos foi dito numa recente sessão sobre direitos e deveres dos investigadores na Universidade de Oslo). Ah, então as leis/regras num sistema judicial  têm uma fundamento operacional económico... de tal forma forte que nem vale a pena tentar. Daí, resultam regras absolutamente idiotas para qualquer investigador, que basicamente forçam por exemplo a destruir os dados tornando a sua pesquisa irreplicável, ou mesmo impedem a pessoa de investigar alguns problemas. Não vou entrar nestes detalhes, até porque haverá milhões de exemplos, mas penso que o caso ilustra como a "Justiça" funciona.

O outro caso tem a ver com o chamado VOP, vocabulário ortográfico do português, uma lista de palavras de acordo com o novo acordo ortográfico que uma "instituição" portuguesa desenvolveu, e que aparentemente serve de ganha-pão para negócios tudo menos limpos. A palavra instituição, entre aspas, tem a ver com o facto de que é a constituição jurídica da dita que lhe merece aparentemente mais respeito, como me disse um funcionário da dita, que me explicou que claro que o XXXXX deveria receber dinheiro público porque era uma instituição, enquanto que a Linguateca o não merecia porque o não era. E não era, isso ele talvez não soubesse, porque eu não o quis, porque achei que a burocratização da Linguateca era algo que parecia mesmo o dito XXXXX, um organismo que nunca fez nada de interessante (opinião minha, claro) mas que canalizou dinheiro a rodos com esses e outros truques, de instituição. Ora essa é uma questão que poderá ser melhor tratada por historiadores da ciência ou da linguística alguns séculos depois... A razão por que menciono aqui neste momento esta questão foi que uma conhecida minha, a trabalhar para uma empresa norueguesa, contatou a dita "instituição" sobre o uso do VOP, e esta quis-lhe (ou à empresa norueguesa, para ser mais correta) extorquir o couro e o cabelo para usar as listas públicas que o constituem. Um bom exempo da imoralidade do dito instituto, mas que levanta também muitas outras questões, num registo mais geral:

  • Quem é dono da língua?
  • Quem trabalha com listas que correspondem a autoridade linguística (que é o caso neste caso) têem o direito ou mesmo a possibilidade legal de pedir dinheiro pelos seus produtos?

Note-se a diferença entre dicionários e textos literários (com que tradicionalmente as editoras ganham dinheiro) e listas de palavras que foram promovidas como autoridade (que portanto foram encomendadas e pagas à entrada). Mas: faz mal receber dinheiro extra por elas? Numa sociedade imoral, em que o único critério de sucesso é o lucro, a pergunta nem faz sentido.

Mas o meu objetivo aqui é chamar a atenção exatamente a questão para que tipo de sociedade queremos, que tipo de justiça queremos, e que tipo de comportamentos -- neste caso restrito, em relação à nossa língua -- aceitamos ou contra os quais estamos dispostos a reagir.

 

 

 

 

Emneord: direito Av Diana Sousa Marques Santos
Publisert 11. jan. 2015 11:59 - Sist endret 15. juli 2015 10:28