Uma bibliotecária imaginada, ou "Fada-madrinha"

É bem sabido que por vezes a vida dos escritores é material para outros escritos de ficcionalização do escritor. E que não é possível destrinçar, mesmo na narrativa biográfica, nem sequer autobiográfica, entre a "realidade" e a ficção.

Mas nunca pensei que até eu iria cair na tentação de produzir um pequeno texto sobre uma personagem inspirada pela vida de Luís Ruffato, e já por várias vezes por ele descrita, a bibliotecária de uma escola secundária por que passou, o Colégio Cataguases: Veja-se por exemplo A Igreja do Livro Transformador, Depoimento de Luiz Ruffato a Eliane Brum, no blogue ardotempo.

Fada-madrinha
(inspirado pela história de Luiz Ruffato)

Eu já estava farta da minha vida numa biblioteca de escola a que ninguém ia. É certo, ganhava dinheiro para sustentar os meus filhos, mas fora para isso que estudara?

Até que tive um presente inesperado: um menino completamente virgem de influência literária, na idade melhor para ser influenciado, doze-treze anos, apareceu na minha vida. Durante um ano, pensei constantemente nos livros que lhe poderia dar e que alimentassem o seu gosto e a sua descoberta de um mundo diferente, e que não o afastassem da leitura. A primeira vez que lhe dei um livro, não tive muita esperança. Mas ele voltou passado dois dias e tinha lido o livro todo! Aí, eu peguei a oportunidade com ambas as mãos. Dei um novo, muito diferente. E ele leu. E continuou a ler, sem compreender -- até muitos livros depois -- que eu lhe tinha pegado essa doença, a de precisar dos mundos dos outros, das palavras dos outros, para crescer.

Oh, e como cresceu! Eu tentei dar-lhe uma dieta o mais variada possível, porque o menino não tinha referências, vivia num mundo muito limitado, mas claramente tinha uma inteligência e uma sensibilidade acima do normal. Eu fiz sempre o papel de "bibliotecária chata", que apenas lhe impingia livros como o meu trabalho, mas ele tornou-se, para mim, durante aquele ano que andou naquela escola de Cataguases, o produto da minha influência, uma criação minha. E também, confesso, o objeto central dos meus pensamentos. Será que conseguiria manter o afã dele pela leitura? Será que conseguiria acender-lhe o gosto pela literatura em geral, e não só apenas por romances de guerra, de viagens ou de amor? Será que conseguiria imaginar que livro(s) ele poderia aceitar e que mais uma vez lhe voltassem a cabeça para outros voos? Será que também conseguiria que ele amasse os clássicos, sem saber que eram clássicos?

Depois daquele ano, ele nunca mais apareceu. Imagino que tenha mudado de escola outra vez. Nunca mais me procurou. E eu nunca mais tive um leitor, ou usuário de biblioteca, que me preenchesse tão plenamente a minha vida ! -- mesmo os meus filhos, nunca consegui provocar ou influenciar tão completamente as leituras deles, mais tarde.

Nunca, nunca mais ouvi falar dele. Mas, em dias de sonho, imagino que ele se tornou um grande escritor, e que um dia me virá procurar.

 

Emneord: literatura ficção
Publisert 31. aug. 2019 16:52 - Sist endret 31. aug. 2019 16:54